Humanidades

Pesquisa investiga as bases do crescimento econômico chinês
Tese revela como planejamento estatal impulsionou o desenvolvimento financeiro do país
Por Unicamp - 20/11/2024




Em 1976, quando Mao Tsé Tung morreu, o mercado de capitais chinês inexistia, toda a política de crédito nacional ocorria com recursos orçamentários e a única instituição financeira a atuar no país era o banco central chinês. Passados quase 50 anos, o país asiático transformou-se em uma das maiores economias do mundo, com um Produto Interno Bruto (PIB) de mais de US$ 17 trilhões e a maior paridade de poder de compra do planeta. Essencial para que isso ocorresse foi a reforma e a abertura econômicas de Deng Xiaoping, que, em 1978, promoveu a introdução gradual de mecanismos de mercado no país.

Entender o papel do financiamento nesse processo de crescimento tornou-se o objetivo da economista Marília Ceci Cubero, que defendeu um doutorado sobre o tema no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Em sua pesquisa, a autora investigou como se desenvolveu o financiamento no sistema bancário e no mercado de capitais chinês no período de 1979 a 2020, quando o gigante asiático passou por intensas transformações nessas áreas. Para tanto, Cubero priorizou a compreensão do sistema a partir da própria perspectiva chinesa, que consolidou as bases de seu sistema bancário sem abrir mão da coordenação e do direcionamento a cargo de um Estado centralizador.

De acordo com a especialista, o modelo chinês não deve ser copiado na íntegra por outros sistemas financeiros porque muito do que acontece lá só funciona por conta da estrutura de poder consolidada pelo Partido Comunista. Entretanto entender os vários aspectos desse sistema pode fornecer insights valiosos sobre a importância do planejamento governamental para operações financeiras em outras partes do mundo. “Esse mecanismo mostra a capacidade de financiamento que o sistema financeiro pode adquirir em prol do crescimento a partir do planejamento e de estratégias diretas de governo. Então você não vai conseguir reproduzir [isso], mas pode pegar pequenos exemplos de experiências interessantes”, afirma.

Uma dessas experiências é a taxa de reserva compulsória, que o próprio Brasil implementa, mas que as nações centrais aboliram. Por meio desse instrumento, as instituições financeiras devem, diariamente, deixar retido no banco central um percentual do dinheiro que receberam em suas transações. Trata-se de uma medida para garantir a segurança do sistema financeiro, já que impede os bancos de emprestarem todo o montante possuído e, assim, ficarem sem caixa. A China, que utiliza esse mecanismo, possui taxas diferenciadas a fim de ampliar o crédito para setores sociais, o que pode ser um modelo de financiamento direcionado para fins específicos a ser seguido.

Outro exemplo fornecido pelo gigante asiático é a criação de mecanismos com o intuito de direcionar o crédito para a transição energética, estimulando o financiamento verde. De acordo com o estudo, a China possui o maior mercado de títulos verdes do mundo e vem, especialmente a partir de 2016, financiando inovação, novos meios de transporte e a mudança da matriz energética das indústrias em seu território. “É importante lembrar que eles ainda têm uma matriz energética muito poluente, baseada em carvão, mas esse é um insight interessante porque os chineses possuem mecanismos de direcionamento de crédito que possibilitam esse movimento, enquanto que, nos países centrais, isso tudo foi desmanchado”, comenta a professora Ana Rosa Ribeiro de Mendonça, que orientou o estudo.

Planejamento e expansão

Para a linha de pensamento econômico heterodoxa, não se pode compreender o crescimento da China sem considerar o sistema financeiro como um alicerce fundamental do financiamento dessas transformações. Logo quando as reformas começaram, uma das primeiras estratégias tratou de criar os quatro grandes bancos chineses, conhecidos como Big Four, a partir de departamentos do banco central do país. Ao longo do tempo, esses bancos ganharam peso no financiamento das estatais e no desenvolvimento do país, tornando-se atores centrais no sistema financeiro nacional, mas sempre sob a interferência de entidades administrativas do Estado.

Tal sistema compunha-se de duas partes interdependentes: de um lado, o Estado planejava as reformas e o desenvolvimento nacional; enquanto do outro lado, o mercado regulamentado atuava como um mecanismo para aprimorar o financiamento. Nesse contexto, cabia ao aparato estatal criar projetos iniciais que, caso dessem certo, ganhariam uma dimensão maior, chegando ao restante da economia. “Eles vão constituindo esse sistema ao longo do tempo. Primeiro criam os grandes bancos públicos. Depois surge uma série de cooperativas urbanas e rurais. Em seguida, eles criam os policy banks, os bancos de desenvolvimento. Então esse é um sistema em constante constituição e transformação”, afirma Mendonça.

Um exemplo dessa lógica de experimentações deu-se com a montagem do mercado de capitais chinês. Em um primeiro momento, a partir de 1978, empresas estatais lançaram formas primárias de ações e títulos, por meio de experimentos montados em torno de projetos-pilotos, antes da existência de mercados organizados ou de órgãos supervisores. Somente na década de 1990, estabeleceu-se uma bolsa de valores e uma estrutura regulatória centralizada, também como um experimento. Passados 30 anos, o projeto inicial se consolidou em um mercado de capitais com a segunda maior bolsa de valores do mundo e um mercado de títulos corporativos em crescente expansão.

A principal forma de promover o financiamento, no entanto, continuou a ser o sistema bancário. Nesse contexto, destaca-se a abertura de linhas de liquidez – criação de dinheiro – para empréstimos de baixo custo a setores prioritários. Com isso, o país progrediu no financiamento de micro- e pequenas empresas, que historicamente ficaram à margem do sistema de crédito. “Essas empresas agora possuem uma participação muito relevante na contratação do crédito a partir das estruturas de fomento. Até o início dos anos 2000, a China estabeleceu metas anuais para a concessão de crédito a setores produtivos prioritários. Mesmo com a flexibilização desses instrumentos de direcionamento, em 2016 nasceu um programa de financiamento inclusivo que ampliou significativamente os empréstimos para as micro- e pequenas empresas”, afirma Cubero.

Esse processo fez com que, de 1980 a 2020, a China sustentasse um crescimento médio de 10% ao ano, colocando sua economia no mesmo patamar da de países que se abriram para o mercado décadas antes. Mendonça avalia, porém, que o gigante asiático claramente se inspirou em exemplos internacionais, uma vez que mesmo nações liberais como os Estados Unidos lançaram mão de mecanismos de atuação estatal na origem de seus sistemas. “Com o passar do tempo, nessa onda mais ampla de liberalização, a partir dos anos 80, isso vai se rompendo. A China com certeza olhou para esses países porque, sem direcionamento de financiamento, todas essas grandes experiências não teriam ocorrido”, finaliza a docente.

 

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